Eu não sou os lindos templos que já pisei. Eu não acredito na coerência disfarçada dos padres, pastores, monges, gurus e dirigentes espirituais. Nem na falsa capacidade de convencimento em troca da ganância pelo poder. Eu vejo olhos sem máscaras. Eu escuto falas sem filtros, mas isso me custou um preço bem alto. Como uma flecha cega me lancei para as minhas próprias experiências, para que então a verdade fosse revelada: do belo aos olhos para o podre aos sentidos.

A estrutura religiosa é historicamente doente, com pessoas ambiciosas suficientemente nocivas e com ‘lugares santos’ que acobertam podridões em nome da fé. Doutro lado o tribunal do século XXI se tornou a internet, onde abusadores e abusados são colocados numa mesma régua e mede-se cada um de acordo ao bel prazer, sem empatia e respeito. Separando-os em dois grupos: os que tinham o perfil de abusar e daqueles que tinham o perfil de seduzir.

Essa realidade não está distante de nós, acontece diuturnamente debaixo de nossos narizes. Noutro dia foi o João de Deus com a acusação de mais de 350 mulheres, ontem os monges do mosteiro de São Bento, em São Paulo, Sri Prem Baba, Tadashi Kadomoto, tantos sacerdotes espalhados neste mundo, carregados de um padrão e ‘modus operandi’ impecável, mas que como sempre, muitos casos são varridos para debaixo de um tapete sepulcral.

Uma decisão ou entendimento desse monte não é compreendido do dia para a noite. Quando passa a ser externado, já culminou pelo duro silêncio, para então torná-lo compreensível, logo depois os seus traços em nossos corpos nus passam a reverberar. A visibilidade que intimida acobertada mediante o medo, a culpa e a coerção.

E não precisa haver celibato e repressão para que o abuso e o estupro aconteçam. As políticas intimidadoras – e silenciadoras – das religiões (ou mesmo daqueles lugares onde não dizem ter religião declarada!) não são mais surpresa, assim como não fazem parte da exclusividade. Afinal, quantos abusadores são casados e sustentados pelos próprios templos em que assediam homens, mulheres e crianças e os mantém dentro do seu trono intocável? De um lado marcas regadas a dor na vida de muitas vítimas e para muitos abusadores será apenas mais um número ou troféu.

Quando algo acontece conosco – ou bem pertinho de nós – nos roubam a finitude, o lirismo e a esperança. O lugar sagrado da fé é composto por bases como: a inocência, entrega, fidelidade e verdades, sendo um completo crime transformá-lo a nossa fé em um castelo de areia. As minhas cicatrizes, para além do físico, se transformaram em um trampolim, carregado de força para lutar por aquilo que acredito verdadeiramente e para não permitir que o passado se repita no futuro.

Como alguém que tentou ser silenciada após uma série de abusos, posso lhe afirmar, caso já tenha passado por alguma experiência semelhante: abandone a culpa, a dor e o medo. A doença não está em você. Busque ajuda profissionalizada para então se acolher.

E não, eu não estou aqui para demonizar credos. Estou aqui em tom de alívio, depois do silêncio; com o ar de vitória pelo desvinculo, por energeticamente ter me doado, e consequentemente ter sido sugada ao extremo, e com a certeza somente o amor cura, seja o de quem estende o coração ou de quem entende da nobreza do próprio amor.

Eu sou o instante feito de agora. Sou a urgência da vida. E voltar a caminhar em passos seguros depois de tanta insegurança me traz a certeza de que não preciso me reduzir para caber em olhos, expectativas, tampouco em caixas. Não sou nada disso. Ou sou apenas tudo isso, para além do visível.

Mas como disse o Apóstolo João lá no novo testamente: “Deus é amor”. E eu acrescento com a devida licença poética: Os homens nem sempre.

Que eu siga desconstruindo para construir, mas sem esquecer que meu corpo, minha casa, e meus sentidos é o meu templo genuíno e aqui está tudo interligado. Meus universos inventados são melhores do que qualquer outro.

Sou mais do que o namastê e gratidão dito da boca para fora. E se perguntarem por mim, pode afirmar que eu sou do mundo. E é somente lá que eu me caibo.

Juliana Soledade é advogada, escritora, empresária e teóloga. pós-graduada em Direito Processual Civil e Direito do trabalho.

Escritora do cotidiano que enxerga nas miudezas a possibilidade de orquestrar palavras. Autora dos livros: Despedidas de Mim, Diário das Mil Faces e 40 surtos na quarentena: para quem nunca viveu uma pandemia. E conclui o seu quarto livro, sobre o Caminho de Santiago para lançamento no próximo semestre.

 

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