Uma inspeção da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), realizada no Conjunto Penal de Itabuna em 29 de janeiro deste ano, revelou uma série de irregularidades graves na unidade prisional do sul da Bahia. Entre os problemas apontados estão superlotação, circulação de celulares, privilégios indevidos a detentos e até um suposto plano de invasão ao presídio por uma organização criminosa.
O relatório da inspeção foi divulgado nesta sexta-feira (11), no Diário Oficial do TJ-BA, e traz denúncias que envolvem inclusive o Projeto Relere — iniciativa de remição de pena por meio da leitura — coordenado pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) desde 2022. Segundo o documento, o projeto teria sido usado como fachada para beneficiar Fábio Santos Possidônio, preso apontado como liderança do tráfico de drogas na região.
O que mostra o relatório
Com capacidade para 670 detentos, o presídio abrigava, no momento da inspeção, 822 pessoas — 152 a mais que o permitido. O relatório aponta que Fábio Santos usufruía de regalias como preparo de refeições em espaço separado e uso de utensílios próprios, além de manter influência sobre outros presos. A promotora Cleide Ramos, coordenadora do Relere, teria participado de algumas dessas refeições, segundo os fiscais.
O documento também relata falhas de segurança, como a entrada indiscriminada de celulares na unidade, métodos de ocultação dos aparelhos e cobrança de valores aos internos para facilitar o acesso aos dispositivos. Outro ponto crítico foi a identificação de um plano de invasão ao presídio por uma facção rival, com o objetivo de resgatar lideranças criminosas — entre elas, o próprio Fábio Possidônio, que acabou sendo transferido para outro presídio de segurança mais rígida.
Explicações e posicionamentos
Em resposta, a promotora Cleide Ramos negou as acusações. Ela afirmou que o projeto Relere é uma iniciativa séria, voltada para a ressocialização, e que não interfere nas questões de segurança da unidade. Disse ainda que não foi ouvida durante a inspeção e que o corregedor agiu de forma inadequada ao não incluir seu depoimento nem o do juiz responsável, que estava de licença.
Cleide admitiu que a banca avaliadora das resenhas literárias — exigência do projeto para concessão da remição de pena — não tem funcionado por falta de voluntários, mas ressaltou que essa situação não é exclusiva do Relere. Segundo ela, Fábio participa do projeto desde 2020, por decisão de incluir chefes de facções nas atividades de leitura com o objetivo de reduzir a violência na cidade — algo que, segundo a promotora, apresentou resultados positivos.
A Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap) informou que adota rigorosos procedimentos de revista em todas as unidades prisionais do estado e que há um equipamento Bodyscan em funcionamento no Conjunto Penal de Itabuna. Disse ainda que, ao tomar conhecimento das denúncias, antecipou a transferência de Fábio e determinou a abertura de sindicância para apurar responsabilidades. Caso sejam confirmadas irregularidades, a empresa que administra a unidade em cogestão será notificada e responsabilizada.
Já o Ministério Público da Bahia afirmou, em nota, que o projeto Relere segue critérios pedagógicos e legais, com controle de frequência e avaliação institucional. Disse ainda que a coordenação do projeto não implica gestão do presídio nem favorecimento de internos. O órgão defende que o Relere tem gerado impactos positivos, como a redução dos índices de homicídios e o acesso de internos ao ensino superior, além de ter sido referenciado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A Corregedoria do TJ-BA determinou que sejam apuradas as falhas na atuação da Vara de Execuções Penais de Itabuna e que medidas sejam adotadas para restaurar a segurança e a ordem no Conjunto Penal.
Nota da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização
“A Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap), informa que cumpre rigorosamente os procedimentos de revista em todas as Unidades Prisionais do Estado e que no Conjunto Penal de Itabuna, específicamente, há um aparelho Bodyscan em funcionamento. Esse aparelho funciona como um raio X corporal que detecta com imagens precisas, visitantes que estejam tentando acessar a Unidade com ilícitos escondidos no corpo.
Informa ainda, que logo que tomou conhecimento da inspeção, realizada pela Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia em janeiro deste ano (2025), ainda que não tivesse sido notificada oficialmente, a Seap se antecipou realizando a transferência de Fábio Possidonio e de outras lideranças sensíveis que estavam custodiadas na Unidade. Sobre as possíveis irregularidades, como favorecimento do interno com refeições separadas dos demais e outros desvios de conduta apontados no relatório, esta Secretaria informa que o Secretário José Castro já solicitou a abertura de uma sindicância para apurar as responsabilidades dos envolvidos e, se constatadas as ilegalidades, notificar e responsabilizar a empresa que administra o Conjunto Penal de Itabuna em cogestão. Por fim, informa que cumprirá todas as determinações da Corregedoria de Justiça, a fim de que não hajam falhas que ponham em risco a ordem e segurança do Conjunto Penal de Itabuna, bem como adotar e/ou reforçar os mesmos procedimentos em todas as outras Unidades prisionais do Estado.”
Nota do Ministério Público da Bahia
“O Ministério Público do Estado da Bahia, em respeito institucional pela atuação da imprensa, vem prestar esclarecimentos sobre informações jornalísticas veiculadas quanto à inspeção no Conjunto Penal de Itabuna.
O MPBA esclarece que a seleção dos participantes do projeto ‘MP Educa/Relere – Remição, Letramento e Reintegração’ é realizada com base em critérios pedagógicos, organizacionais e legais, sendo responsabilidade da direção prisional a autorização de ingresso de internos e colaboradores. A coordenação do projeto pelo Ministério Público não implica ingerência na gestão da unidade prisional nem interferência nas decisões judiciais. Portanto, não há no projeto qualquer instrumento que permita ou favoreça a concessão de regalias.
O ‘Relere’ é uma iniciativa interinstitucional regularmente estabelecida por Termo de Cooperação Técnica firmado entre o Ministério Público do Estado da Bahia, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) e a empresa cogestora da unidade prisional, Socializa Soluções em Gestão. A iniciativa é orientada pela Resolução CNJ nº 391/2021 e se baseia em metodologia técnica, com rigoroso controle de frequência, avaliação pedagógica e acompanhamento institucional.
Qualquer pessoa privada de liberdade que atenda aos requisitos legais pode ser incluída no projeto, sendo os benefícios concedidos exclusivamente nos termos da Lei de Execução Penal, mediante validação judicial. As atividades desenvolvidas, como oficinas de cidadania, leitura orientada e produção cultural, são conduzidas com absoluta transparência, mediante registros periódicos, prestação de contas e estrita observância das normas legais e administrativas.
Desde a implantação do ‘Relere’, em 2020, e outras ações de ressocialização na unidade prisional, a média de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) no município caiu de 119,6 (período de 2015 a 2019) para 47 (período de 2020 a 2024). O projeto gerou ainda economia de recursos públicos estimada de R$ 458 mil.
O ‘Relere’ foi referenciado pelo CNJ e replicado em outros estados. Soma-se a isso a realização de mais de 800 horas de oficinas de cidadania, a produção de resenhas literárias para comprovação das atividades e a aprovação de 56 pessoas privadas de liberdade em instituições de ensino superior – conquistas que demonstram o impacto positivo das iniciativas na educação, cidadania e reintegração social.”